Era só uma curiosidade sobre amarelinha…

Encho Chagas
10 min readOct 12, 2017

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Seguindo mais um dia nos meus intensivos estudos em game design, eu resolvi ler a introdução do Critical Play, da Mary Flanagan, indicação do Eduardo Caetano (autor de Violentina e Meu Brinquedo Preferido). A intenção desse livro é provocar uma atuação mais ativista e subversiva em autores de jogos, partindo do discurso dos jogos como expressão artística e cultural. Daí a autora fala um pouco sobre jogos universalmente conhecidos, às vezes culturalmente derivados com peculiaridades locais conforme são exportados, e finalmente cita um tal hopscotch. Nunca tinha escutado esse nome, mas conforme ela foi descrevendo a incrível presença desse jogo em várias culturas e partes do mundo diferentes, mas ainda sem descrever as regras do jogo, eu fiquei encabulado. Como assim não conheço esse jogo?

Brasil.

Qual não foi minha surpresa, depois de fazer um Google, descobrir que hopscotch nada mais é que o nome americano da amarelinha, uma daquelas brincadeiras clássicas de escolinha.

Eu vou imaginar que talvez um possível leitor não conheça o jogo, ou talvez não o reconheça por um desses nomes. A amarelinha nada mais é que um jogo onde os participantes devem pular de quadradinho em quadradinho, indo e voltando de uma ponta a outra de um determinado trajeto de dez passos, em um pé só ou com os dois pés quando houverem dois quadrados na mesma linha. Além disso, antes de começar a pular, o jogador deve atirar uma pedrinha em um dos quadrados e ali ele não poderá pisar. Na primeira passagem o jogador deve jogar a pedra no primeiro quadradinho, na segunda no segundo, e por aí vai. Caso o jogador erre a pedrinha no quadrado alvo ele perde a vez mesmo antes de começar os pulos. Vence o primeiro jogador que repetir o processo com a pedrinha em todos os quadrados.

Claro, essa é apenas uma das versões do jogo. Internetando por aí descobri que na India o jogador deve atirar de costas a pedrinha, e talvez ou eles tenham realmente uma intuição extra-planar ou essa não seja uma regra tão determinante. Na Hungria você deve jogar a pedrinha no próximo quadrado que vai pisar, pegando ela novamente a cada novo passo, o que faz a dificuldade de acertar a pedrinha no quadrado menos relevante e deixa o jogo mais físico. Imagine ter que ficar abaixando em uma perna só pra pegar a pedrinha a cada passo? Na França e nos EUA também existe uma versão em espiral, em que acertar a pedrinha fica muito mais difícil além da dificuldade de pular em um pé só em velocidade enquanto faz uma curva. No Irã e alguns outros países orientais joga-se muito a versão com apenas seis quadrados em linha, versão que também é encontrada em representações antigas do jogo na Inglaterra mas sempre com uma forte caracterização religiosa, como na imagem abaixo. Será que há alguma relação?

Os desenhos são os mais variados. Eu lembro na minha infância de chegar a jogar nomeando a primeira e última posição como Inferno e Céu, uma óbvia referência católica no jogo que talvez tenha vindo junto com os colégios religiosos. Não encontrei nenhuma informação que comprovasse essa teoria, mas me recordo que em todo colégio antigamente haviam amarelinhas pintadas no chão, provavelmente uma iniciativa da própria escola. No Brasil a maioria das primeiras e ainda tradicionais escolas são obras de congregações católicas, o que provavelmente pode indicar a forma como o jogo foi importado.

Mas o ponto mais curioso, e mais revelador sobre a nossa cultura, é certamente quando você começa a listar todos os nomes que o jogo recebeu ao redor do mundo. O texto mais antigo a citar o jogo é em inglês, do século XVII, que o chama de Scotch-hoppers. Isso não é evidência para a origem do jogo, já que existem pinturas da roma antiga que mostram crianças brincando nas pedras de mármore quadriculadas da antiga cidade. Scotch pode ser traduzido como plataforma ou algo assim, tradução que eu nunca havia visto antes mas que faz mais sentido do que um “pula-escocês”. O texto original dizia ‘a play in which boys hop over scotches and lines in the ground’.

No Oriente Médio o jogo é conhecido como chindro ou stapoo, e chegou a ser banido pelo Taliban por ser um ‘jogo de garotas’. Na Turquia chamam de seksek, sendo que sek significa pular em um pé só. Em muitos países da Europa Oriental todas as traduções têm a ver com ‘classes’, como no Russo классики ou no polonês klasy, em que além do desafio físico os jogadores precisam definir uma categoria de palavras para dizer em voz alta a cada quadrinho, como vários nomes de flores ou cores. Bosnia, Croácia e Sérvia chamam de školica, que significa ‘escolinha’, o que mostra essa relação do jogo com as escolas. O mesmo pode ter sido a razão do nome campana na Itália, que significa sino, apesar de que os sinos também podem ser uma característica da presença do jogo em congregações religiosas. E, claro, vários nomes que se referem ao desenho ou à pedrinha. Na India chamam de thikrya, que é o mesmo nome dado às divisões de uma pedra partida ou quebrada fazendo uma alusão aos vários quadrados separados por intervalos. Na Coréia do Sul é ttangttamŏkki, ou chão com pontuação, que vale pontos.

Mas nada é mais curioso que os nomes pelos países da América Latina. A maioria de colonização espanhola mantém o mesmo nome europeu, rayuela, cuja tradução não consegui descobrir. Porém no México o jogo é chamado também de mamaleche, literalmente ‘bebe leite’. Curioso. No Brasil amarelinha é o nome mais popular mas muitos podem conhecer como marolinha, maré, marmelo… e apesar de todos esse nomes serem parecidos, etimologicamente eles não parecem ter a mesma origem. Até você descobrir o nome francês do jogo: marelle. ‘Marelle’ significa ‘pedrinha’ em francês, então tá fácil, mas é curioso como Brasil e México, dois países conhecidos por adaptar bastante culturas estrangeiras, simplesmente nacionalizaram o termo da forma como entenderam. Fico imaginando aquele pé vermelho tentando comunicar com um missionário europeu e ao ouvir a palavra ‘marelle’ manda um “como que é? Amarelo? É assim que fala?”

Essa história me fez pensar muito sobre nosso país, e como nossa cultura é um exemplo de miscigenação e apoderamento de características que não nos são originais mas as tornamos tradicionais. Somos a resultante final de uma mistura de toda parte, resignificado ao nosso jeitinho e muitas vezes sem um sentido lógico do porquê é como é. É porque o primeiro fez assim, e assim será. Para o bem ou para o mal.

Por quê não temos mais amarelinhas?

Meu maior interesse nesse tipo de jogo, e então voltando a pensar sobre um estudo que fiz sobre distribuição, licenciamento e proteção há alguns meses, é como esses jogos se espalharam pelo mundo em uma época com tão pouca comunicação internacional. E hoje é tão difícil proliferar uma criação do tipo mesmo localmente. Os exemplos modernos de jogos ou outras obras que realmente se tornam produções multi-nacionais só se dão por um investimento pesado em distribuição e viralização, e mesmo assim não costumam durar muito. É difícil imaginar um jogo moderno cruzando barreiras de linguagem e se tornando “tradicional” em outra cultura, a menos que seja comprado por uma empresa local.

Existem vários fatores e variáveis nesse argumento. As migrações do passado traziam muita cultura a serem absorvidas durante a construção das primeiras nações. Hoje há uma luta por imposição, apropriação e proteção cultural, de um lado intolerância social e uma cultura materialista que anda sempre nas mãos da elite econômica, e de outro uma busca por identidade e representatividade em um mundo cada vez mais segregatório. A cultura capitalista globalizada não conhece outro modus operandi: ela precisa capitalizar para prosperar. O comércio entende equivocadamente que precisa lucrar em cima de elementos culturais, como a discussão recente sobre a apropriação de elementos da cultura negra sendo explorada e descontextualizada pela indústria da moda, justamente um povo que sofreu séculos na mão do mercantilismo.

E da mesma forma não existem mais produções surgindo sem interesse comercial. Tudo bem que a cultura das brincadeiras de rua como um todo estão desaparecendo por conta da cultura do medo e violência, da verticalização da malha urbana, da crise dos sistemas de ensino, que vem cortando o fator lúdico do conteúdo cada vez mais cedo por conta da pressão mercadológica sob o ingresso ao ensino superior. Mas mesmo saindo do contexto da amarelinha, beira o impossível um jogo produzido de forma independente conseguir um alcance internacional sem um investimento grande de tempo e/ou capital em publicidade. Se por um lado a antiga motivação dos inventores dos jogos de rua era apenas criar dinâmicas divertidas, hoje é incomum um jogador não ter como sua maior motivação capitalizar em cima do seu jogo.

A coisa que mais me vem à mente como o maior empecilho é certamente essa tal de ‘propriedade intelectual’. Argh… que herança a revolução industrial nos deixou. Como é um tema que já tratei diversas vezes por aqui não vou me estender muito, mas vou fazer um resumo da lógica anti-copyright para o novo leitor. E só perguntar ao Mickey como funciona. Todo tipo de lei que tem por origem a defesa de algum interesse econômico vai sempre estar nas mãos do poder privado, e não do poder público/político. As grandes corporações conseguem controlar o mercado e as leis a seu bel prazer, dominando seus competidores menores e mantendo sua propriedade a salvo (mesmo quando a propriedade sequer é sua, mas nenhuma empresa pequena vai ter recursos para manter uma batalha legal com esses caras). Para empresas pequenas a única consequência não é a proteção do seu lucro, mas também um controle indesejado de sua proliferação. Existe um paper de 2013 (link para ler) do Paul J. Heal, professor da Universidade de Illinois, que fala sobre como o Copyright na verdade esconde trabalhos, e invariavelmente os tiram do mercado. Hoje nós temos mais livros disponíveis escritos em 1800 do que da década de 1990, impedidos de serem distribuídos por conta da proteção. Muito conhecimento é produzido, mas o interesse individual se sobrepõe ao crescimento coletivo.

Fronteiras

A expansão da amarelinha também se deu em uma época de fronteiras não tão bem estabelecidas. Missionários vagavam por toda parte, e uma atividade tão trivial como esse joguinho certamente não preocupou líderes interessados em proteger sua cultura. A brincadeira entrou ingenua e silenciosamente, e ninguém nunca perguntou quem foi seu autor. Todo mundo a chamou de sua e ela entrou para o domínio público global. Uma atividade considerada tradicional mesmo em países de culturas tão diversas e até opostas. Curiosamente nada que podemos criar hoje parece ter um poder cultural tão grande.

Isso é muito curioso. Hoje temos tecnologia para nos permitir comunicação e transporte para o mundo todo. Inclusive o acesso a diferentes culturas nos deveria viabilizar mais conhecimento, tolerância, facilidade de comunicação. O resultado é o exato oposto. Nossas fronteiras são cada vez mais vigiadas, a miscigenação cultural mais vilanizada. Por mais que a humanidade tivesse uma vida mais brutal na era medieval, o mundo inexplorado permitia que as pessoas se realocassem na medida do possível.

Não tenho certeza mas chutaria que a maior parte das leis migratórias se endureceram por conta das grandes guerras e o subsequente medo do terrorismo. As nações menores apenas seguem a tendência, “porque é assim que se faz no primeiro mundo”, e por vezes é a única resposta diplomática quando um país mais poderoso resolve sancioná-lo. “Seus cidadãos também não são bem vindos aqui”. Não me sai da cabeça o pensamento de que se trata unicamente de uma sinuca em que nos encontramos por conta de diversos acontecimentos históricos, que ninguém mais sequer tem o interesse de discutir por conta de tantas rusgas passadas ou simples conformidade.

Tenho um gosto muito grande pelo que alguns já chamam de ‘cultura espacial’. Por mais que a corrida espacial tenha sido um desenvolvimento fruto da guerra e do nacionalismo, hoje sua herança se coloca como a maior fronteira do conhecimento humano. Somos uma espécie exploradora por natureza, e assim que terminamos de ocupar todo santo lugar do planeta, o único espaço restante é o sideral. E ali muitas rusgas não têm lugar. EUA e USSR fizeram missões conjuntas e compartilharam segredos tecnológicos mesmo durante a Guerra Fria, interesses públicos e privados se cruzam em prol do progresso coletivo, e sem uma linha para se demarcar territórios ou áreas férteis para se ocupar parece ser desinteressante um futuro de conflito espacial.

Um curioso efeito registrado e compartilhado por astronautas de diversas nações e culturas é o chamado Overview Effect. Vista do espaço, a Terra não possui fronteiras. A Terra parece pequena, ínfima. Menores ainda parecemos nós, ocultos dentro desse planetinha. Todos os nossos conflitos, toda a nossa cultura, tudo que nós criamos… tudo isso parece ínfimo frente às dimensões espaciais. Propriedade intelectual? O que é a posse de um humano sobre uma ideia, uma criação virtual, frente à imensidão da realidade? Nesta perspectiva o indivíduo humano não é absolutamente nada, assim como uma formiga solitária. Porém temos certa relevância enquanto formigueiro. A humanidade é capaz de persistir, de fazer parte deste universo e fazer a diferença. Não o indivíduo. O indivíduo não possui sequer tempo de vida para fazer uma viagem entre os planetas do nosso sistema solar.

Nós insistimos em valorizar nossas obras como produções de indivíduos, mas elas são criações do coletivo. Cada indivíduo se baseia no conhecimento e construção de tantos outros humanos anteriores para criar sua obra, e depois conta com os próximos para que estes façam sua contribuição ser relevante. A nossa cultura contemporânea parece se esforçar para fazer o oposto: o indivíduo tenta se distanciar do conhecimento coletivo e se legitimar como o dono de um conceito dito 100% original, que então passa a ser sua propriedade, e os próximos não conseguem ter acesso a esse material sem pagar o preço certo, o que inclusive mina o seu interesse. Porquê consumir se eu posso produzir o meu próprio e lucrar também?

E esse é um resumo da minha reflexão de hoje. E tudo começou só como uma curiosidade sobre amarelinha…

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Written by Encho Chagas

Game designer e pesquisador de jogos. Um maluco que acredita poder mudar o mundo através de jogos. https://www.youtube.com/EnchoIndieStudio

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